Graças a Duchamp

Uma terceira visita ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Um professor de antropologia me dizia que observar visitantes em museus era, muitas vezes, mais interessante do que as próprias obras de arte. Nunca concordei muito com isso. Mas foi neste momento que me veio à cabeça um pintor e escultor francês chamado Marcel Duchamp. Há alguns anos, havia lido um artigo dele numa dessas publicações especializadas para o estudo das artes no meio acadêmico. Duchamp, como é do conhecimento geral, ficou mais famoso pelo conceito de arte moderna do que pelas obras enquanto pintor e escultor. Foi ele quem levou, a uma exposição em Nova Iorque, um urinol comum, comprado numa loja de materiais de construção, como se fosse uma obra de arte. A peça, intitulada “A fonte”, foi rejeitada pela curadoria, mas a polêmica rendeu a Duchamp certo prestígio no meio artístico pós-moderno.
Milhões e milhões de artistas criam pelo mundo, em cada canto do planeta, nos lugares mais inóspitos. Só alguns mil são discutidos no meio artístico ou aceitos pelo espectador, e pouquíssimos são consagrados pela posteridade. Ou seja, o artista pode gritar à vontade que ele é um gênio, mas só o veredicto do espectador, dos apreciadores da arte, dos curadores, poderá lhe dar o valor social ou colocá-lo entre os escolhidos pela história da arte. É assim desde sempre e sempre vai ser. E as coisas tendem a piorar num sistema capitalista globalizado. Muitos artistas, é claro, vão discordar desta linha de pensamento sobre o valor do objeto artístico e a contribuição deles para a cultura, porque muitos deles recusam este papel de médium, de místico, e insistem na qualidade das próprias consciências no ato de criação. Ainda que a história da arte tenha, comumente, se decidido pela virtude de um trabalho por razões completamente diferentes da racionalização do artista. Não é possível criar uma obra de arte como quem fabrica uma televisão ou elabora um projeto de engenharia. Há uma coisa mística e, quiçá, mediúnica neste processo. Se um artista, como um ser humano, cheio de boas intenções em relação a si próprio e ao mundo, não tem nenhum papel no julgamento de da própria obra, como podemos descrever o fenômeno da obra de arte atuar sobre o espectador e fazendo-o reagir criticamente a ela? Em outras palavras, como essa reação surge? Pensei nisso mais uma vez, sentado em um banco do MAM.
E pensei sobre todas aquelas obras ali, que foram levadas à posteridade. Compreendi que a arte pode ser má, boa ou indiferente, mas qualquer que seja o adjetivo que se dê a ela, nós devemos continuar chamando de arte. Uma obra, mesmo ruim, continua sendo obra de arte. Assim como uma emoção desagradável ainda é uma emoção. Para tentar compreender essas etapas do processo de criação, me lembrava sempre dos artigos de Duchamp. Um deles dizia que, no ato de criação, o artista caminha da intenção à realização por um encadeamento de reações totalmente subjetivas. Como se fosse uma série de esforços, satisfações, recusas, dores, decisões, que também podem e devem não ser totalmente conscientes, pelo menos no campo estético. Eu sempre defendi que ninguém pode criar uma obra de arte sabendo exatamente aonde vai chegar, como uma equação que você espera um resultado exato, fechado. Isso não deve e não pode acontecer no processo artístico-criativo. Não há como pensar na produção de uma obra cinematográfica, por exemplo, tendo total controle sobre todas as etapas. Da elaboração do roteiro, da pré-produção, gravação e pós-produção. O resultado final, fatalmente, não será o imaginado e estabelecido pelo criador lá no início do processo. A arte lhe conduz e você, se sensível, deixará ser levado por ela. Eu sabia que era assim que deveria ser, se o artista quisesse ser honesto com o processo artístico dele. Há um abismo entre o que se teve a intenção de fazer e o que se conseguiu expressar com determinada obra de arte.