Olha aí, foi só mais um guri
Eu estava ali, naquele hospital, meio nervoso, mas com uma alegria que nem cabia no peito.
“Seu filho nasceu forte! Parabéns, Seo César, ele é lindo!”, me disse a enfermeira.
Fiquei vermelho até. Dizem que preto não fica vermelho, mas eu fiquei sim, senhor! Minha cara esquentou até!
Era meu guri ali, né, o senhor sabe, filho homem, a gente sente orgulho!
“Se a mãe concordar, vai ter o mesmo nome do pai, vai ser chamar César”, pensei.
Meu César, mas eu gostava mesmo era de chamar de Zinho. Sou Flamengo de coração, o senhor sabe.
Esse guri era danado!
Quando aprendeu a andar, com um aninho, tinha mania de correr atrás do cachorro, o Edmundo.
Poxa, doutor! Animal, vascaíno, pode rir, doutor, eu era feliz, tinha meu filho ali, gostava de sacanear meus amigos!
Ele corria atrás do Edmundo todo dia. Era a coisa que ele mais gostava de fazer.
Não demorou muito pra pegar força nas pernas. Quando caía, não chorava, olhava para cima, com os olhos meio confusos, e desatava a sorrir. Sorrir dele mesmo. E que risinho lindo tinha aquele meu menino. Meu Zinho!
Lá pelos seis anos, de tanto correr, jogava bola que era uma beleza! Nunca esperava muito pra entrar no time da pelada. Era lateral, o melhor! Não estou me gabando, não, doutor. Pode perguntar pros amigos dele, se o senhor quiser.
Os amigos dele…
Posso ligar para minha esposa um minutinho, doutor? Às vezes, fico meio confuso, o senhor sabe, tenho tomado alguns remédios esses últimos dias.
O meu Zinho está bem? Cadê meu filho, doutor?
Ele, uma vez, disse que queria ser policial, igual ao senhor. Eu disse que era muito perigoso. Falei que era melhor entrar para o Exército, mas na Marinha. Ele iria ficar bonito naquele uniforme branco.
Já lhe mostrei a foto dele, doutor? Lindo, o garoto!
O senhor tinha que ver quando ele se arrumava para sair com a namorada. Disse que queria casar com ela. Não durou três meses! Eu ria dele. Dizia que logo ele iria encontrar outra mais bonita. No começo, ele ficou triste, mas superou. Foi no ano que o Mengão foi campeão. Em seguida, ele esqueceu.
Contei pro doutor que ele arrumou um emprego? Foi sim. Por conta própria! Menor aprendiz, porque ainda é de menor, mas ele está tão feliz que o sorriso não cabe na boca!
Ele disse que ia sair no sábado pra comemorar. Passear no parque. Vai se amostrar um pouco pras meninas. Meu filho é bonitão, sabe, doutor. Meio amostrado, às vezes. Quando tem menina então, vixe! O senhor tem que ver.
Conheço aquele menino!
Sábado, ele vai sair de carro com os amigos pra comemorar o primeiro salário.
Que dia cai o sábado, doutor?
Hoje já é quarta?
Acho que são os remédios. Dizem que é pra acalmar a gente.
Tô achando que tira a memória. Confunde, às vezes.
Falei pro Zinho tomar cuidado quando for sair. O mundo tá muito violento. E pra gente, que é negro, o perigo dobra. Sempre falo isso. Ele tem mania de me dizer que estou sendo racista com minha própria cor. Que as coisas estão mudando. Eu digo que ele tá entrando no embalo dos amigos do computador. Aqueles que ele fica conversando na internet.
Essa tecnologia! Faz a gente acreditar em tudo o que dizem. Tem gente dizendo até que não tem racismo no Brasil. Acredita, doutor? Só se for no Brasil deles!
Eu já não ligo mais, mas não quero ver meu Zinho ficar ouvindo “serviço de preto” todo dia, igual eu ouço lá na firma. Meu Zinho, não, quando ele se formar doutor, vão ter orgulho dele.
Que horas meu Zinho sai do hospital, doutor?
O quê?
Não entendi…
Que carro, doutor?
Aquele que foi alvejado? 111 tiros…
Que foto é essa que o senhor quer que eu veja?
Reconhecer?
Não preciso reconhecer meu filho, doutor!
Já disse que conheço meu filho!
Esse aí não é meu filho, não, doutor!
Não dá nem pra ver a cara. Tá muito machucado. Quanta maldade!
Óbito?
Eu não assino, não.
Que óbito?
Eu só vim buscar meu filho.
O senhor me dá licença!
Por que minha esposa esta dormindo naquela cadeira?
Por que ela está com cara de choro?
Onde está meu filho?
Eu quero meu filho!
Me solta! Eu estou calmo!
Eu só vim buscar meu filho!
Zinho?!
Zinho, meu filho!
Me solta!! Filho??!!
Onde está meu filho?!!
111 tiros!!
Tira ele de lá, doutor!!
Ajuda ele, doutor!! Ele só tem 16!!!
Me ajuda, doutor! Limpa o rosto dele!
Meu filho, eu quero meu filho!
Texto baseado no covarde ataque feito pela polícia militar (escrito em minúsculo, para melhor representar a instituição) do Rio de Janeiro, no dia 28/11/2015, contra cinco jovens desarmados, filhos de pais e mães, seres humanos, que passeavam de carro a fim de viver.