Brasil 2014

Vai ter Copa?

servido por: Juca Badaró

Há alguns anos não via Vincent, um francês de 35 anos, muito atencioso e inteligente, que conheci durante um festival internacional de dança em Salvador. Nos intervalos dos espetáculos, costumávamos passear pelo Passeio Público, nos arredores do Teatro Vila Velha ou beber algumas cervejas no Quintal – no Campo Grande –, para conversar sobre cinema novo e nouvelle vague. Vincent me chamava atenção pelo profundo conhecimento sobre a sétima arte, de modo geral, e também pelo curioso interesse, ainda que superficial, pela obra de Glauber Rocha. O português dele não era dos melhores, eu também não falava francês, mas, na medida do possível, nos entendíamos muito bem.

Nos vimos, pela última vez, no encerramento do festival, ocasião em que bebemos até o dia amanhecer, num boteco do Largo Dois de Julho. Desde então, Vincent desapareceu. Até que recebi um e-mail dele, anunciando a vinda ao Brasil para a Copa do Mundo. Fiquei muito feliz em recebê-lo, ainda mais porque, desta vez, ele ficaria hospedado no Rio de Janeiro, cidade que escolhi morar há cerca de um ano e meio. Marcamos o encontro no Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim, o Galeão, onde ele desembarcaria após um longo e cansativo voo de Paris. O que não esperávamos é que, naquele mesmo dia e hora, chegariam os jogadores da seleção brasileira. Foi um destes golpes do azar. Demorei a encontrar Vincent no saguão lotado de turistas, jornalistas, fotógrafos, policiais militares, civis e federais, seguranças de toda sorte e, claro, professores.

Os profissionais da educação estavam em greve e aproveitavam para protestar contra a Copa do Mundo. Foi no meio dessa confusão que avistei Vincent, atordoado, parecia não acreditar no que presenciava. Com muito custo, consegui alcançá-lo e, juntos, atravessamos – correndo – um dos portões do desembarque. Lá fora, nos deparamos com manifestantes e professores, que eram empurrados pela polícia, enxotados com ajuda de bombas de efeito moral e cassetetes certeiros. Estávamos no meio do protesto, sem ter para onde ir. A voz e os lábios de Vincent tremiam. O francês, de fato, não esperava por uma recepção tão calorosa no Brasil. Não sei o que mais impressionou o estrangeiro. Se foram as palavras de ordem e os gritos contra a Copa, as faixas e os cartazes denunciando os gastos com o mundial ou a revolta, nítida e inconteste, nos olhos daqueles brasileiros.

Era realmente difícil para o francês compreender como um povo apaixonado por futebol se manifestava de maneira tão veemente contra o mundial da FIFA. Afinal, desta vez, éramos os anfitriões. Nós, brasileiros, habitantes desta pátria de chuteiras, de Nelson Rodrigues, iríamos, enfim, mostrar ao mundo todos os nossos já conhecidos atributos. A nossa alegria, o nosso carnaval, as nossas mulatas dançantes, a nossa diversidade e, porque não dizer, a nossa insuperável receptividade. Não, o francês jamais entenderia essa revolta popular.

No meio de um engarrafamento imoral na Linha Vermelha, tentei explicar para Vincent que muitos brasileiros morriam por falta de atendimento médico em hospitais públicos, que os professores não eram respeitados em nosso país, que alunos de escolas municipais e estaduais passavam a maior parte do ano sem aulas por conta de greves e paralisações, que a qualidade do transporte público era um desrespeito ao cidadão e que, nas favelas das grandes cidades, as famílias brasileiras eram violentadas e aviltadas, diariamente, por um poder público corrupto. Enquanto isso, milhões e milhões de reais foram gastos em construções caras, subutilizáveis, que não iriam abrigar o povo apaixonado por futebol, mas uma elite privilegiada e acostumada com o padrão FIFA de qualidade.

Não, Vincent não sabia de nada. Era um inocente. Vincent não sabia, por exemplo, que o Estado brasileiro preparava um aparato ostensivo jamais visto para coibir e calar a voz de manifestantes que ousassem protestar na Copa das Copas. Uma frente de policiais militares em batalhões especialmente criados para o megaevento. E mais alguns milhões de reais gastos em balas de borracha, bombas de gás, escudos, armas de choque, capacetes e outros armamentos não letais em fase de teste. O francês também não tinha conhecimento de que o legislativo brasileiro pretendia tipificar o crime de terrorismo no país, criando uma manobra jurídica para que tribunais pudessem condenar (e colocar na cadeia) integrantes de movimentos sociais e manifestantes comuns.

Naquele dia, deixei Vincent, no hotel em que ele estava hospedado, com um sentimento de culpa. Talvez tenha estragado as expectativas dele, talvez tenha falado demais. Talvez nem ele quisesse conhecer aquele Brasil. Talvez nem eu quisesse acreditar em tudo aquilo.