Opções

Vence na vida quem sabe escolher

servido por: Thiago Ferrarias
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O ser humano nasce com um senso de imortalidade.

Como eu sei disso?

Você pode buscar isso na literatura, na psicologia, na religião, na ciência ou em você mesmo.

Eu apenas sei.

No nosso pacote de humanidade, não vem embutido o senso de mortalidade. Por mais claro e óbvio que pareça o nosso destino final – a morte –, nós não nos damos conta disso.

Passamos toda a vida, até o último momento, achando que haverá um amanhã.

Existem situações extremas que podem nos dar essa consciência: como um assalto à mão armada, um acidente de carro ou um quase afogamento, porém isso fica reservado à pessoa que viveu o momento. Provavelmente depois que o choque passa, esse ser voltará a sentir a imortalidade novamente. De certo, vai buscar este sentimento a vida toda, indo ao psicólogo ou à igreja…

Difícil encontrar quem saiba conviver com a verdade da morte no dia a dia.

Mas o que acontece quando o senso de mortalidade nos atinge para sempre?

Quando você se vê no espelho e percebe que a luz da inocência já não brilha mais bem dentro dos seus olhos?

Dos doze aos dezesseis anos, eu estudei numa escola muito violenta, que ficava num bairro muito truculento. Era muito comum brigar feio para manter meu boné ou passear em paz com minha namorada.

Eu era interessado em estudar. Sabia que aquele lugar não era para mim, apesar de não fugir de uma briga, seja essa qual fosse, para defender o que era meu ou minhas idéias, “ideais”. Lidava bem com isso. E apesar de não buscar confusão, aquele lugar todo nunca foi com a minha cara… e passei por situações inimagináveis para um jovem que sempre quis estudar e ter uma vida normal.

Numa dessas situações, na oitava série, eu fiquei – como de costume – até mais tarde na escola, estudando xadrez (!) e a diretora entrou na classe perguntando por mim.

Já era escuro, por volta de sete e meia da noite. O clima era quente e de ventos frios. Provavelmente uma chuva que estivesse chegando.

Ela me chamou para conversar do lado de fora da classe e, com uma feição de quem estava apenas desempenhando “tal papel”, disse para tomar cuidado ao sair, pois ela tinha ouvido falar que quatro homens estavam me aguardando na saída. Dito isto, ela foi embora com postura de “papel cumprido” e olhou para mim como quem espera um “obrigado pela informação”.

Eu tinha catorze anos, mas já media um metro e oitenta, me vestia e portava como homem, apesar de que tudo em mim denunciava minha verdadeira idade – era um garoto.

Eu nasci assim, “mais velho”.

Isso me fazia alvo dos adultos que invadiam a escola diariamente, alguns para vender drogas, outros para pegar “as menininhas”. Fetiche dos homens fracos.

Ou seja, eu estava imune às brigas adolescentes, mas incomodava gente grande.

Voltei para a sala e continuei jogando meu xadrez, despreocupado.

Já era de praxe: alguma menina que poderia estar interessada em mim – ou que eu pudesse ter interesse – despertou um ciúme violento em algum dos “malandros” mais velhos que vinham até a escola, para fazer dela o “harém” de menores que mal tinham a oportunidade de se “despertar” de forma natural, com pessoas da mesma idade.

Para mim, era mais um caso.

Eu, sempre sem medo – pois eu era “imortal” –, iria enfrentar os caras. Era constantemente assim.

Eu chegaria e perguntaria se eles realmente queriam brigar. Se sim, eu diria para que “fizessem fila” e viessem um por um, como “cavalheiros”, não como covardes.

Eu sempre fui sarcástico e usava estas palavras. Bater ou apanhar era uma questão física. Tendo vivido em ambientes assim a vida toda, violência era algo comum para mim. Não havia “medo de apanhar”.

Tinha, sim, um friozinho na barriga, mas igual ao que dava antes de entrar no Evolution, brinquedo legendário do Playcenter (bons tempos!).

Minhas preocupações maiores naquele momento eram: onde deixar o material escolar – minha mochila – enquanto eu brigava, pois alguém poderia roubá-lo na rua enquanto eu estivesse “distraído”; e a outra era não voltar para casa muito machucado.

Enquanto eu pensava nos “pormenores”, meu instrutor de xadrez veio até mim e me perguntou sobre o que estava acontecendo. Eu contei e disse a ele para que não se preocupasse.

Ele era jovem, perto dos vinte e cinco anos provavelmente. Um dia, já foi envolvido com o crime, mas achou no xadrez uma maneira de distrair e evoluir a mente e o espírito.

Mas existe um ditado para quem vive ou viveu nos subúrbios brasileiros: “você pode sair da favela, mas a favela não sai de você”.

E acredite, meu amigo, ele é verdadeiro. Para o bem ou para o mal.

Uma vez nascido lá, você será para sempre um sobrevivente.

O instrutor, que tinha o mesmo nome que o meu, ficou irritado com aquilo, e me disse que iria tentar resolver a “situação”. Ele iria conversar com os caras lá fora.

Ele falava sorridente, com ares de paz, mas os olhos deixavam claro que ele estava preparado para a briga, se necessário.

Nós sempre estamos!

O fato é que ele foi e nunca mais voltou. Simples assim. Era para eu provavelmente estar morto, desde os catorze anos. Por nada.

Minha visão sobre a vida e o mundo mudou muito desde o dia seguinte, quando fiquei sabendo na escola que o meu instrutor de xadrez – o cara mais legal de lá – tinha sido assassinado.

A maioria nunca soube que ele tinha ido “no meu lugar”.

Apenas eu… e a diretora, que agora me olhava como quem mantinha comigo um segredo em comum.

Situações como estas só se resolveram quando eu deixei aquele lugar. Anos mais tarde.

Desde então, o que havia de criança em mim não existe mais.

Com isso, eu vivo com o senso de mortalidade. O que, por algumas vezes, me tira o gosto de muitas coisas, mas que por outras me faz refletir de forma mais autônoma.

O senso de mortalidade me deu um poder muito importante: o poder da escolha.

Eu aprendi que poder escolher é estar mais próximo da vida real… e um pouco mais distante da manipulação.

Foi pelo poder da escolha, que eu pude ser consciente quando decidi ser mais tolerante com as pessoas.

Quando decidi não ser homofóbico, por exemplo.

Que meus amigos precisam de direitos iguais aos meus (e eu bem sei o que é “não ter” direitos). Entendo, de alguma forma, o que é ser minoria.

Com a escolha nas mãos, pude decidir que, mesmo sem entender completamente – pois é um processo –, eu deveria respeitar, “abrir alas” e, quem sabe (já que, como homem, talvez nunca saiba o que elas passam), fazer algo pelas mulheres e a luta feminista.

Eu posso escolher, a todo momento, ser alguém melhor.

E não porque uma “onda social”, uma emissora de TV ou uma religião me diz para ser, mas porque eu posso decidir ser.

Eu posso escolher que, para “vencer na vida”, não é preciso dizer sempre sim. Mas, sim, escolher dar mais valor às pessoas do que às coisas, que eu posso esperar até entender algo que não me é claro de imediato. Que o respeito faz toda a diferença.

Assim, eu cometo menos injustiças, menos pré-julgamentos.

Assim, eu estou mais perto de ser humano de verdade.