David Bowie: Warszawa e o porquê dos homens poloneses serem tão tristes
Morar em Varsóvia, viver a uma temperatura de até -30ºC no inverno e saber que o Bowie se foi (não sabemos exatamente para onde), me fez andar pelas ruas, numa madrugada fria, à procura de um bom lugar para ouvir a música de um gênio, que fez a trilha sonora de muitas gerações.
O que eu encontrei foi mais do que isso. Claro.
Eu encontrei história.
Y otras cositas más!
Claro que eu já havia saído diversas vezes por aqui. Conheço um bom pedaço da noite polaca, na maior cidade do país. Eu também havia percebido um sentimento, de certa forma, obscuro nos homens daqui. Um sentimento que beirava a solidão, algo de rude, uma tristeza.
Eles bebem sozinhos, ou acompanhados de outros homens, os shots de vodka (na zdrowie!) numa contínua e ininterrupta celebração do que, para mim, parece ser o próximo gole (por aqui chamada wódka).
Pronuncia-se algo perto de “vuúdka”.
Claro que há muitíssimas exceções, mas eu me refiro ao espírito da coisa, ao ambiente em geral. Como quando você vai ao Rio de Janeiro.
Apesar da violência, você só consegue amar aquela cidade.
Deixo claro que a noite daqui é muito boa, divertida… e as pessoas, no geral, também. Me refiro ao que se percebe quando se é sensível ao coração do ser humano.
De qualquer forma, voltemos à Europa central. Voltemos à minha noite.
Num daqueles momentos em que você se pega sozinho, fumando um cigarro e observando o ambiente ao redor, uma música do Bowie começou a tocar.
Uma música complexa… a princípio: estranha, longa e melancólica.
Vendo que algumas pessoas comentavam entre si sobre aquilo, àquela canção, resolvi me enturmar e perguntar a respeito.
O nome da música é Warszawa (Varsóvia). Eu sorri na hora que fiquei sabendo.
Claro! – pensei.
O homem era um gênio! – concluí.
Em abril de 1976, o Bowie e o Iggy Pop estavam viajando de Zurique para Moscou, passando pela Polônia. Como registrado na biografia do Iggy – Open Up And Bleed (traduzido “perfeitamente” para o português como: A vida e a música de Iggy Pop) por Paul Trynka…
“Eles viram cidades marcadas por buracos de tiro e crateras de bombardeios ainda não fechadas(…)”
Traduzido livremente por mim.
Ele caminhou um pouco pela cidade, sentiu a “pegada” e isso foi o bastante para ele criar o (por ele mesmo chamado) “Six-minute-plus brooding hymn”, que, na minha tradução, seria “Hino de mais de seis minutos da depressão”.
É uma música muito bonita, que traz bem o espírito de uma cidade que ainda se recuperava da total destruição na Segunda Guerra e ainda vivia sob o comunismo.
Mas algo daquela melancolia ainda paira por aqui, apesar da cidade ter se recuperado muito bem, ser moderna e ter uma das maiores economias da Europa. Inclusive não passou pela crise que fez Portugal ser a Síria Europeia por volta de 2011, quando nossos irmãos lusitanos migraram aos milhares para terras polonesas.
Sabendo disso, eu quis ir mais a fundo. Fui perguntar às mulheres se elas sentiam o que eu sentia e o porquê daquilo.
Por que os homens poloneses eram tristes?
E, claro, as mulheres sempre sabem. Então, por quê?
A história da Polônia é grande, antiga e vasta de reviravoltas. Começa lá pelo século X e é completamente ligada à igreja católica.
Houve momentos em que foi um dos maiores (se não, o maior) império da Europa. Mas, como toda grande nação que testemunhamos na história, se desintegra internamente e rui.
Em 1795, a Polônia não existia mais. O país foi excluído do mapa: a cultura e até o idioma foram proibidos na maior parte do território, que estava dividido entre a Rússia, a Prússia e a Áustria. Havia, dentre o povo polonês, um sentimento de amargura e revolta.
Um país, que já tinha sido enorme, foi reduzido e fatiado pelos vizinhos.
Isso durou até 1918. Quando terminou a Primeira Guerra, a Polônia se tornou independente mais uma vez.
Dentro deste período, a fome era constante. Tanto a fome de comer quanto a fome de se ter identidade novamente.
O que o governo “oferecia” de mais barato e acessível eram a vodka e o pão. O cidadão contava quantas bocas tinha para alimentar dentro de casa e, com isso, sabia o quanto de pão e vodka deveria receber para levar para casa.
Isso gerou um problema, que assola boa parte dos países do leste europeu: o alcoolismo. Aqui é raro encontrar uma família, cujo pai ou avô não é, ou não foi, alcoólatra.
Naquele tempo, as pessoas faziam reuniões secretas – dentro das igrejas – para poderem cultivar a língua. Por isso, talvez, ser católico, aqui, seja de tamanha importância. Mais do que uma religião, uma questão cultural. Uma questão de honra.
Por mais que o país tenha se tornado uma nação novamente no final da Primeira Guerra, enfrentou – outra vez – uma divisão poucos anos depois na Segunda Guerra.
Com isso, o sentimento de frustração passou de geração em geração e, hoje, mesmo tendo distante a sensação da perda, o polonês carrega, na alma, a marca e a dor da guerra e da separação das raízes dele.
Parecido com a visão do Bowie, quando visitou a cidade. Como as crateras que ainda existiam nos anos 70, há feridas não fechadas no peito dos cidadãos daqui.
A vodka ainda parece ser a grande aliada para se proteger da frieza das ruas e da história.
Contudo, há também um sentimento patriótico muito bonito. Não se fala sobre o que se perdeu por aqui, mas sobre o que se cultivou e se recuperou.
Não há um choro de lamentação, mas de orgulho.
Há um respeito e simplicidade mútuos, quando se observa a história daqui.
Talvez essa simplicidade fosse o segredo do Camaleão. Transformar história numa sinfonia entre A maior e D menor. Fazer você sonhar acordado, ao som dos acordes de Starman, que, na minha compreensão, fala dele mesmo.
E, como escrevi numa pequena nota, no Facebook, logo após a morte dele (ou viagem espacial, insisto), ele era um homem de gentilezas. Que nos deixou um presente antes de partir. Hábito comum de cavalheiros, que não vemos mais por aqui.
Tudo isso com a maior simplicidade e sutileza do mundo.
Como disse o polonês e músico excepcional Frédéric Chopin: “simplicidade é a realização máxima”.
No fim, fui embora contente naquela noite. Bêbado também, claro.
Olhei para o céu, tentando adivinhar de qual estrela o Bowie olhava para nós – aqui na Terra -, que estamos sempre buscando respostas e inspirações para a vida… tendo a necessidade de ser mais que seres humanos, querendo ser heróis todos os dias, sem sucesso, quando a resposta mais simples para qualquer questão veio dele mesmo.
Parafraseando David Bowie: “(…)o segredo é ter força de vontade e um bom par de meias”.
Na zdrowie!