Cidadão de bem de quinta
Antes do bom dia para a esposa, responde ao bom dia no grupo da família. Toma café assistindo ao SPTV, quer saber do trânsito, mas, droga, hoje é dia de rodízio. Café preto e pão com manteiga para dentro da barriga, não pensa, não pensa.
Na plataforma de embarque do metrô, impede – com o corpo – que engraçadinhos furem a fila. Está ali e vai sentado, esse povo sem educação!
Na viagem, levanta quando vê uma idosa longe. Insiste para que ela sente, ela não quer, ele insiste, ela – contrariada – senta, ele sorri. A boa ação. Não pensa, não pensa.
No trabalho, fala das partidas da noite anterior do Brasileirão; no café, comenta sobre a bunda da estagiária; no relatório, trapaceia alguns números; no banheiro, assiste ao vídeo da adolescente que transou com vários na favela; na frente do chefe, inventa alguma desculpa para o trabalho não entregue. Compensa a preguiça com carisma, não sente culpa, sabe que é um cara legal. Chama a amante casual para o almoço.
À tarde, assiste ao vídeo do ladrão de periferia se dando mal, fala da bíblia para julgar o travesti da mídia, recebe foto do filho no celular, deixa o ramal tocar, a esposa quer atenção no WhatsApp, compartilha foto agradecendo a benção de Deus.
Vangloria-se de nunca ter lido um livro, de o avô ter trabalhado duro na roça, da educação que o pai deu, dos valores que recebeu e que vai repassar para o pequeno.
Na volta pra casa, compra um doce para agradar a “patroa”, janta em frente à TV, o Jornal Nacional mostra as barbaridades que selecionou do mundo lá fora, mas ele não faz parte daquele mundo. O filho dele não vai viver naquele mundo. Não pensa.