Raio Encadernador
Acredito que todo mundo que está aqui, por essas bandas, tem total conhecimento sobre os “raios” que viraram memes recentemente.
Bueno! De uns tempos para cá, comecei a notar a existência de mais uma espécie. Um tipo que transforma histórias em quadrinhos meia-boca em clássicos instantâneos. Um tipo que pega histórias criticadas pra cacete, quando publicadas mensalmente, e converte em sagas indispensáveis quando encadernadas…
Vivemos um momento definitivamente interessante para ser um colecionador de quadrinhos no Brasil! Não existe discussão sobre isso! Material clássico sendo republicado. Muito material bom – fora do eixo Marvel/DC – e, principalmente, de fora dos EUA. E não só brasileiro, como material argentino, europeu… mas, ao mesmo tempo, não vamos esquecer que esse nosso mercado ainda é bem frágil e facilmente inflável (e já fez algumas belas vítimas…).
Temos um monte de colecionadores novos chegando (o que é ótimo!) e as editoras tentando se adaptar e querendo a fatia delas no mercado. Só que temos um pequeno problema: parece que o prazer da coleção de quadrinhos, hoje em dia, é ter uma estante bonitona! E é aí que o Raio Encadernador tem se esbaldado…
Enfim… a piada pode ter sido muito ruim, mas não é pior do que essa tendência besta que tem tomado conta do nosso mercado de quadrinhos.
Já vi alguns comentários para encher de vergonha. Coisa do tipo: “se eu pegar uma revista, bater na capa e ela não fizer toc-toc, eu não compro”…
Enfim…
Lembro-me de uma época em que colecionar quadrinhos tinha a ver com acompanhar todo mês aquele personagem, que você gostava e lhe servia de inspiração e exemplo. Uma época em que, com alguns trocados, você fazia uma limpa na banca. Uma época em que os quadrinhos eram feitos para se ler, reler e ler de novo, até você praticamente ter decorado cada fala.
Mas, hoje, não! Hoje, HQs são algo para ficar exposto ou intocado na estante…
E (novamente) é aí que o Raio Encadernador tem se esbaldado…
Querem um exemplo? OK! A passagem de Grant Morrison pelo Superman, no início dos Novos 52. Uma série confusa, arrastada, que parecia mais ter sido escrita no piloto automático do que com a paixão que o autor sempre disse ter pelo personagem. Vi muita gente falando mal pra cacete, na época em que saiu na revista mensal. Mas o tempo passou e a Panini lançou um encadernado imponente, com toda a fase do escocês… e, de imediato, virou um item indispensável em qualquer coleção!
Mais um? Novamente Panini… Crise Infinita. Mais uma daquelas mega-sagas da DC. Lançada em homenagem à Crise original. Com milhões de séries relacionadas e um Superboy Prime dando socos no muro da realidade, foi uma saga chata e cheia de problemas, que só teve a cena do Batman, dando um belo de um “THUG LIFE” no Superman, como motivo para não ser facilmente esquecida.
É mais uma história que saiu recentemente, em um encadernado bonitão e, instantaneamente, se tornou o sonho de consumo de todos os leitores! O belo presente que o correio trouxe! O item que faltava na estante!
E olha que nem toquei no tema Salvat… a entrada definitiva dos quadrinhos no nicho dos colecionáveis! 60 volumes, capa dura, com um belo acabamento gráfico e que, com toda a coleção reunida, ainda formaria um painel bonitão com as lombadas! E como essa lombada-painel rendeu! Fora os erros imperdoáveis na lombada das quatro primeiras edições, qualquer pequeno desnível no painel era um belo motivo para boicotar a coleção. E, não, os erros de revisão. E, não, a falta de planejamento e de dar um mínimo de feedback ao leitor sobre quais edições iriam compor a coleção. E, não, a péssima escolha de algumas sagas, incluídas entre os 60 volumes.
O importante era a lombada! Mas o sucesso foi inegável! Tanto que fez a editora crescer os olhos e lançar uma segunda coleção nos mesmos moldes… mas sem nenhuma revisão! Só nas duas primeiras edições, erros amadores me fizeram notar que aquilo era uma cilada…
Mas em vez de ver o pessoal pulando fora de uma coleção feita às pressas, apenas para canibalizar ainda mais o mercado, os colecionadores continuaram lá… e reclamando de qualquer desnível no painel.
E para fugir do nicho Marvel e DC, vamos citar o que aconteceu recentemente com as HQs da Valiant, publicadas, aqui no Brasil, pela HQM. Um dos melhores materiais do gênero saindo nas bancas daqui. Tudo bem que tinha uma periodicidade totalmente irregular! Mas, sem querer passar a mão na cabeça de ninguém, se uma editora grande, como a Panini, pena na mão de distribuidor, imagina uma pequena como a HQM? Pois bem, o fato é que as duas revistas da linha fracassaram nas vendas e acabaram canceladas. E vi muita gente falando que não comprou porque ia esperar os encadernados… e a própria editora disse que, em encadernados, a linha tem se saído muito melhor.
E quando a editora mostrou um respeito pelos leitores, propondo seguir com a publicação em um estilo on-demand, o que os leitores fizeram? Nada! Mas, no mesmo dia, vi uma grande maioria “criando movimentos” para pedir o relançamento de Terra X.
Enfim…
E essa tendência dos colecionadores, aqui no Brasil, me faz ficar pensando em duas coisas:
Primeiramente…
Uma pena essa febre por encadernados não ter acontecido alguns anos antes. Em 2007, 2008, tivemos o lançamento de um ótimo material. Liga da Justiça, do Morrison… Starman, do James Robinson… o tijolão da Liga de Justiça, classicona do Gardner Fox… isso só para não me estender muito! Mas que falharam miseravelmente nas vendas e acabaram canceladas. Alguns anos depois, um encadernado capa dura, estrelado pelos vilões da Marvel, vende! Se aquele material estivesse sendo lançado hoje, teríamos uns bons blockbusters nas livrarias e que seriam uma experiência muito melhor para os leitores que estão chegando, migrando dos videogames, do cinema, da TV…
E…
Tenho algumas edições que considero verdadeiras joias na minha coleção pessoal. E que não troco por nenhum desses encadernados bonitões…
A saga completinha de A Morte e O Retorno do Superman (Super-Homem ainda, na época), lançada pela Abril! Definitivamente, é um item que não vendo e não troco… porque foi com o lançamento dessa saga, no Brasil, que realmente me tornei um leitor de quadrinhos!
Gen 13, lançado pela Globo, e Savage Dragon, pela Abril. Tenho todos os números das duas séries e ambas também conquistaram um lugar de honra… porque me fazem lembrar esse momento da publicação de quadrinhos de herói no Brasil!
A linha Premium de Grandes Heróis Marvel, também da Abril. Coleção feita aos trancos e barrancos, mas que consegui seguir completinha. Uma época em que o mercado quase acabou, quando a Abril deixou o formatinho de lado para lançar edições bonitonas e bem acabadas, mas caras pra cacete para a época.
E, entre outras, a joia da coroa! O Universo Ultimate, do número 1 ao 100! Anos de coleção… mês a mês. Em um determinado momento, chegou a ser a única revista que lia mensalmente. E foi uma coleção que foi aumentando enquanto iniciava meu caminho profissional, enquanto largava publicidade para fazer cinema, enquanto fiz os meus três primeiros curtas. Uma coleção que começou com a chegada da Panini no mercado brasileiro e que acompanhou a editora crescendo e dando uma outra cara para as publicações em banca por essas terras…
Acho que deu para entender, né?
Minha estante pode não ser tão bonitona, mas tem muita coisa para dizer. Não só sobre o meu vício, mas também sobre a minha história e até um pouquinho sobre a história das publicações de quadrinhos no Brasil – desde que decidi começar a colecionar HQs…
E talvez essa seja a grande graça de se manter uma coleção.
Não sei se ficou claro…
Não estou falando sobre esse tal Raio Encadernador!
Não estou falando sobre colecionar, ou não, apenas encadernados de luxo!
Não estou falando sobre uma suposta magia e prazer em ler as revistas mensais!
Estou falando que volume e tamanho não fazem uma coleção bacana! Que lombadas não fazem uma coleção bacana!
Mas não ter preguiça de ler, de procurar se aprofundar e de saber mais podem fazer uma coleção bacana! Porque, aí sim, você vai poder ter senso crítico de verdade! Porque, aí sim, você vai definir e encontrar o seu estilo! E, de verdade, ler o que curte!
Recentemente, li um texto falando sobre essa geração que não consegue nem fazer arroz direito, simplesmente porque não se dá ao trabalho de ler a embalagem… e é uma pena identificar esse tipo de perfil, acomodado em um grupo do qual tenho tanto orgulho de fazer parte…
Ou talvez eu esteja ficando velho…
E reclamão…
Enfim…