Angola

Os belos europeus e os estupros culturais

servido por: Juca Badaró
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A Europa vivia o Renascimento e Portugal era uma grande potência econômica e cultural quando, no final do século XV, os primeiros portugueses chegaram à foz do rio Zaire, no norte de Angola. Rapidamente, a colonização avançou e, em pouco tempo, surgiam vilas, cidades e estranhas igrejas europeias na África. Mas, apesar do eficiente sistema colonial português, a região sul demorou a ser conquistada. É que lá viviam povos guerreiros e incontornáveis: os Kwanhama. Eles resistiram (e muito) ao domínio do homem branco.

As batalhas eram constantes e, mesmo com armamento superior, os portugueses não conseguiam avançar e anexar a região ao território já dominado. Muitos europeus perderam a vida nestas lutas sangrentas. Pagaram, com o próprio sangue, o enriquecimento da monarquia portuguesa. Eram tempos da respeitada expansão marítima de Portugal. Um destes guerreiros africanos, que escorraçaram os europeus do sul de Angola, foi o rei Mandume Ya Ndemufayo. Ele era o líder do povo Kwanhama e se tornou um símbolo da resistência à colonização. Em homenagem, foi erguido um memorial no local da morte dele, no município de Namacunde, na província do Cunene. Um lugar histórico e sagrado para os angolanos.

Durante uma visita ao memorial do rei Mandume, acabei conhecendo um historiador e profundo conhecedor das tradições e da cultura dos Kwanhama. Ele me contou as astúcias e os segredos do rei para conseguir vencer as tropas portuguesas e ainda evitar o avanço do exército alemão, que já dominava a Namíbia. Durante os sete anos em que esteve no poder, Mandume foi uma pedra no sapato dos europeus. O guerreiro usava de sabedoria para proteger o território. Primeiro, fez um acordo com os alemães e solicitou o fornecimento de armamento para conter a entrada dos portugueses. O governo alemão atendeu às exigências e, com armas fabricadas em Berlim, o herói africano surpreendeu o exército colonial português. Com a munição e as armas das tropas derrotadas, Mandume atacou as forças alemãs e conseguiu proteger o reinado dele.

Os portugueses só conseguiram dominar a região sul de Angola, efetivamente, com a morte de Mandume em 1917. Ao perceber que seria vencido, após um vigoroso reforço das tropas coloniais, o último rei dos Kwanhama tirou a própria vida. Dizem que os soldados portugueses arrancaram a cabeça dele e a exibiram pelas aldeias da região. O fato é que, mesmo derrotado, Mandume teve um papel muito importante na preservação da cultura e da identidade do povo Kwanhama. Ele conseguiu evitar que a cultura dos angolanos fosse destruída e desrespeitada pelas práticas repugnantes do colonialismo.

Para constar… os portugueses só conseguiram dominar o Cunene mais de 400 anos depois de terem chegado à Angola, na região norte do país. Esse fenômeno político ajudou a preservar uma angolanidade peculiar e apenas presente nesta parte do território. Uma cultura quase sem influência dos portugueses. Uma tradição oral que se perpetua há décadas e décadas… e que pouco se mistura com os traços sociais e culturais do “além Tejo”. Uma identidade que mais se aproxima das raízes e origens do povo Bantu, aqueles que saíram da Nigéria para habitar o sul do continente africano.