Crônica

A paieta

servido por: Bethânia Morico

Apenas uma porta liga a mercearia de Concheta ao resto do mundo. A senhora tem cabelos brancos e tão finos quanto os fios de um bebê. É uma mulher grande. Não apenas gorda, mas grande. Canelas e braços grossos, anca protuberante. Os olhos são pintados de um azul intenso e tem o tom de voz de um general. Concheta nasceu no Brasil, mas é conhecida como italiana – devem ser as expressões que ela solta quando avisa que o pão acabou de sair do forno e o sotaque herdado dos pais. Casou-se, com Nicola, muito jovem. Enquanto ela atende no balcão, ele só vigia a freguesia. Fica sentado numa cadeira de balanço na sala, bem na fronteira entre a mercearia e a casa onde vivem. Nicola compartilha a tinta azul dos olhos da mulher. É alto e magro. Tem o rosto comprido, adornado por um bigode ralo. E é bravo que só vendo. Fiscaliza cada item que sai da prateleira. Ouve os pedidos e vai anotando os fiados numa caderneta. Uma corda de fumo para um, uma enxada para outro. Ninguém sai da venda sem o pedido devidamente registrado. Mas Nicola tem um fraco. Gosta de passarinhos. Ah, se ele ouve o canto de sabiá, até perde o fim do causo. Pois foi um passupreto que o desviou da caderneta. Nicola ficou tão encantando com o assobio, que se imaginou embarcando num navio, rumo à velha terra dos pais. Concheta fechou a mercearia. Nem deu bola para o marido, adorador de cantoria. Depois do jantar, como de costume, ele foi checar as anotações. Tudo o que faltava na prateleira deveria estar anotado no caderninho. Mas… as contas não fechavam. Havia uma paieta a menos no estoque. Nicola não sabia para quem a esposa vendera o chapéu de palha. Concheta tampouco se lembrava. Foi uma noite de tortura para ele. Como pôde esquecer de marcar a paieta vendida? Logo cedo, o velho teve uma ideia. Marcou uma paieta na conta de cada cliente. Aquele que não tivesse levado a compra, reclamaria e, no fim, só quem realmente comprou o chapéu é que pagaria. Concheta ralhou. Achou coisa de louco toda essa artimanha por causa de uma paieta. Naquele mês, Nicola fez questão de ficar no balcão com a esposa. Fechou, pessoalmente, cada conta. Quando o último cliente pagou a dívida, Concheta, já curiosa, não resistiu:

– Então, carcamano, descobriu quem comprou a paieta?

Nicola, com expressão triste, respondeu:

– Niente. Todo mundo pagou a paieta!

Concheta soltou um riso largo, limpou a mão no avental florido e foi arrumar o jantar.