Crônica

O trauma de dona Odete

servido por: Bethânia Morico

Dona Odete resolveu, um dia, se trancar. Fala pouco e quase não sorri, como se tivesse uma certa vergonha da felicidade. Nasceu na praia do Sono, em Paraty, sessenta e um anos atrás. Casou-se com Lourival, um pescador do Pouso, aos dezesseis. Teve seis filhos. Uma das moças vive no Ceará e não vê a mãe há cinco anos. Dona Odete nasceu e viveu do mar, mas, aos poucos, enquanto vai revelando segredos, diz que quer se mudar para uma cidade onde não exista praia. Pensou em Cunha, no estado de São Paulo. Já viu até uma casinha, mas falta o dinheiro para ir embora.

A longa saia florida já está molhada da água que respinga do tanque de lavar roupas. A máquina, comprada há tempos, está parada. O velho gerador não tem força suficiente para fazer o eletrodoméstico funcionar. Como a energia elétrica vai demorar alguns meses para chegar, é na mão que dona Odete lava a roupa da família. Enquanto espera a água – já em falta na ilha por causa da chuva escassa – aparecer na torneira, dona Odete diz, sem timidez, que tem trauma do mar. Culpa as tormentas que enfrentou em barcos simples e um episódio numa cachoeira, pouco antes de se casar. Mergulhou, sem medo, e teve os cabelos presos por um tronco de árvore submerso. Quase morreu afogada. Desde então, segundo ela, tem medo de nadar.

Embora a explicação pareça simples, sabemos que o trauma de dona Odete não foi causado apenas por um episódio nesses sessenta e um anos. Entretanto, ela parece satisfeita por ter contado, para alguém, que o paraíso ao meu redor não é assim tão bonito aos olhos de outros. Sorri, enfim, aliviada e continua a esfregar a roupa no tanque.