Crônica

O naufrágio

servido por: Bethânia Morico

Assim que o barco, finalmente, aportar, prestará um novo vestibular, pensava Alice, enquanto uma chuva de pingos grossos atingia-lhe a face por todas as direções. As rajadas de água e vento martelavam-lhe a cabeça. Com a mão direita, ela segurava o gorro de uma capa de chuva amarela, que cheirava a óleo diesel misturado a entranhas de peixes. A capa lhe fora emprestada, instantes atrás, por um pescador, que teve pena da jovem embarcar no meio de uma tempestade sem qualquer proteção. Mas o plástico amarelo-gema não segurava a força dos litros despejados bem de frente. Alice viajava com os olhos semicerrados. Um pouco pela chuva, um pouco pelo vento, um pouco por medo, um pouco pela vida.

Seis dias atrás, ela, aos dezenove anos de idade, procurava carona no cais dos pescadores. Perambulava em busca de alguém que a levasse para o mais longe possível da civilização. Alice queria isolamento. Queria estar longe dos fantasmas dela, dos monstros que tentavam levá-la ao abismo.

Benedito apareceu do nada. Mal pronunciava palavras inteiras. Apenas sorria. Puxou a moça pela mochila vermelha – cujo peso era, precisam saber, muito maior que o da dona. Alojou-a no barco de madeira dele, chamado O Rei dos Mares, e zarparam às cinco da tarde. À meia-noite, ele encalhou uma canoa na praia de São Bento, um lugarejo sem energia elétrica, sem pessoas e o mais importante: sem Pedro.

Com a lanterna em mão, Alice pôde ver a pequeneza da praia. Trezentos metros de areia, calculou numa breve observação, enquanto apontava a lanterna de uma ponta a outra. Bem no centro, havia uma igreja pintada de branco. Era a única construção da ilha.

– Menina, vá para a igreja e siga em frente. Encontrará um descampado logo depois da pinguela. Monte a barraca por lá. É o lugar mais seguro da ilha.

Benedito, aos berros, completou a frase sem gaguejar uma só palavra. Alice não teve tempo de agradecer. Apenas viu o pescador sumir na escuridão, enquanto ele corria atrás da canoa roubada por uma onda travessa.

Sozinha, sorriu. Imaginou que Benedito pudesse ser um daqueles barqueiros de mitologia, que transportam almas de uma margem à outra, em troca de moedas de ouro. Mas ele nada cobrara dela. Apenas sorria um riso largo e desmotivado.

Sentiu-se protegida. Benedito, o pescador-barqueiro, seria o primeiro homem, em anos, que demonstrara alguma preocupação com ela.

– Parece que encontrou um Muságeta, Licinha – disse em voz baixa, enquanto tentava erguer a mochila enorme.

As ondas vinham de todos os lados. Chacoalhavam o barco feito crianças com caixas de fósforos. De repente, Alice sentiu os pés gelados. Frio, ela sentia desde que parara à beira do mar, acenando para o horizonte, sob forte chuva, na esperança de que algum pescador errante lhe cruzasse o caminho e lhe atravessasse de volta à cidade. Mas ali, na embarcação de Ulisses, enquanto pensava no vestibular e tomava chuva no rosto, ela sentia um frio diferente. Apenas os pés congelavam. Pensou, numa espécie de transe, que tinham naufragado. Talvez pés gelados sejam a primeira sensação que se tem enquanto morre, imaginou.

Morta em algum lugar qualquer do Oceano Atlântico. Alice nunca mais viria a avó ou a mãe. Os primos diriam, num velório simbólico, daqueles que se preenche o caixão com fotos e outras lembranças menores, que nada fora encontrado, nem a mochila vermelha, comprada a prestações. Os amigos lembrariam os porres que lhe vaziam vomitar a dor por ter perdido Pedro. Os vizinhos lembrariam que era silenciosa e recebia poucas visitas. A égua arisca, que Alice adorava montar, nunca mais avistaria a jovem de longos cabelos louros se aproximar e sussurrar: “vamos correr com vontade hoje!”. As palpitações, que a levavam – de tempos em tempos – a médicos diferentes, estariam resolvidas. E os psiquiatras, que tentavam resolver-lhe as crises depressivas, diriam que era uma menina genial, mas tão frágil emocionalmente… pés gelados. Alice não tomaria mais remédios para dormir. Não sonharia mais com o rosto de Pedro. Não brigaria, sozinha, com fantasmas e nunca mais ouviria gritos que a repelissem ou gemidos que a envolvessem.

– Alice! Alice!

Ulisses era pescador, tinha trinta e cinco anos. Alice achou que havia ganhado na loteria quando viu o barco a motor responder aos acenos desesperados dela, na areia da praia de São Bento.

– Graças a Deus! – disse Alice, aliviada, enquanto apertava a mão de Ulisses.

– O que você está fazendo no meio dessa tempestade, sozinha, na praia de São Bento?

– Vim acampar. Faz seis dias que estou aqui e já não tenho suprimentos nem roupas secas. Preciso de carona para voltar à cidade.

– Você deu sorte que meu gelo está no fim e eu preciso vender essas lulas hoje.

Alice olhou para o barco e viu um grande isopor amarrado por cordas.

– Suba, vou te dar uma carona. Mas, antes, vista isso. Vai ajudar. A tempestade é muito pior em alto-mar.

Alice vestiu a capa de chuva amarelo-gema e embarcou.

– Alice! Alice! – Ulisses cutucava a moça pelo ombro.

Alice, com os pés gelados, olhou para o lado. Ulisses tinha a barba por fazer e vivia em uma ilha, próximo à praia de São Bento, com a esposa e três filhos.

– O isopor rachou. Você vai precisa me ajudar – disse o pescador em tom solene.

Só então Alice se deu conta de que ainda estava viva. O frio dos pés vinha do gelo derretido.

Ela agarrou a caixa branca com as duas mãos e Ulisses deu partida. Chegaram à cidade uma hora depois do isopor quebrar.

Alice devolveu a capa de chuva, agradeceu a travessia e seguiu molhada, cheirando a peixe e óleo diesel, para a rodoviária. Pegaria um ônibus rumo à capital.

Durante as três horas de viagem de ônibus, ela não dormiu. Não tinha palpitações. Não ouvia gritos ou via fantasmas. Alice tinha a mente vazia. Seis dias isolada do mundo, à mercê da sorte, fizeram a menina aquietar a alma.

– “Ao menos por um tempo” – murmurou, desejando que a calmaria durasse.

Da rodoviária para casa, o silêncio tomava conta daquela mente quase sempre inquieta. Alice encontrou, enfim, o tesouro que mais procurou: paz.

Já na porta de casa, ela tentava encontrar as chaves. O molho de cinco chaves, que usaria para entrar em casa, estava num bolso escondido, entre documentos, um resto de dinheiro e uma pequena Bíblia.

Garoava na rua escura, quando um menino se aproximou por trás da moça. Não devia ter mais de quatorze anos. Queria dinheiro, mas não deixou Alice pedir paciência para encontrar o tal bolso secreto. Alice caiu sobre a mochila vermelha depois de dois disparos.

Enquanto o sangue escorria pela cabeça, tingindo-lhe os cabelos louros de um ruivo vivo, ela sorriu. Ao longe, dois homens corriam em direção ao corpo caído sobre a mochila.

– Benedito! Ulisses! Que bom vê-los de volta!

A frase, dita em pensamento, não foi ouvida por ninguém.

Alice naufragava sozinha, sem barqueiro, entre o próprio sangue e uma garoa fina naquela rua escura.