Crônica

A história de Dona Cida

servido por: Bethânia Morico

Dona Cida mora no extremo leste de São Paulo. Aos setenta e oito anos, ela passa por catorze estações do metrô para chegar até o hospital onde faz radioterapia. O percurso é repetido toda segunda-feira. Dona Cida faz um café bom que só vendo. Servia a bebida em um prédio empresarial, no centro da capital, quando, em 1974, ela e os colegas admiraram a primeira composição da Companhia Paulista em funcionamento. Foi uma festa só. Chegar ao trabalho nunca fora tão rápido. Quarenta anos depois, ela não perde o pique. Retirou um tumor do seio há alguns meses. Com naturalidade, dá a notícia para a amiga estranha, que acabara de conhecer na estação Bresser-Mooca. A moça emudece enquanto a senhora continua abrindo capítulos do passado. São dez da manhã. A consulta de Dona Cida é daqui a três horas. Vagões lotados passam de dois em dois minutos… nem a jovem, nem a idosa sentem vontade de sair dali. Dona Cida guardou o passado com cuidado, como quem envolve a fotografia do primeiro amor em um pedaço de linho azul e o esconde da memória, na profundidade de uma gaveta. A imagem vai ser contemplada novamente. Mas o passado de Dona Cida não é tão tranquilo quanto os olhos azuis dos enamorados. O marido morreu dormindo no sofá, enquanto a mulher preparava o jantar. Os dois filhos também já foram enterrados. A caçula morreu segurando a mão da mãe. Às onze e meia da manhã, jovem e senhora embarcam. As duas permanecem junto à porta. Despedem-se três estações adiante. Uma vai para o sul; a outra, para oeste. Nesta segunda-feira de retratos revelados, duas mulheres, separadas por cinquenta e três anos de história, carregam as mesmas dores do passado.