(o vento lá fora)
Otto Lara Resende dizia que o poeta é o inquilino do sublime. A afirmação do escritor e jornalista fluminense é irrefutável e, verdadeiramente, muito bem se encaixa no perfil de grandes poetas da língua portuguesa. Mas ao assistir “(o vento lá fora)”, de Marcio Debellian, é fácil compreender que mesmo aqueles que não escrevem poesia podem também habitar essa região mágica e extraordinária do fazer poético. O documentário nos reapresenta Fernando Pessoa por intermédio de duas mulheres acostumadas ao sublime: Maria Bethânia e a professora de literatura Cleonice Berardinelli.
Bethânia e Berardinelli são as únicas responsáveis por esta reapresentação, através de leituras dramáticas de poemas e fragmentos de Fernando Pessoa e, claro, dos heterônimos dele: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. É um filme encantado, leve e que nos mostra um Pessoa cada vez mais vivo na literatura. A tarefa de dissecar o poeta fica a cargo da professora Berardinelli, que explica, com muita simplicidade e elegância, as intenções do autor, as angústias e o processo de criação dos outros poetas dentro dele. Para Bethânia, resta a função de tornar a obra ainda mais grandiosa, seja pela interpretação dos versos ou pela voz marcante que eternizou os álbuns ao vivo da discografia da cantora.
As leituras, gravadas em estúdio, são entremeadas por conversas informais entre as duas personagens, o que dá, ao filme, um ritmo agradável. Quase não vemos os 62 minutos passarem nas imagens em branco e preto e nas interpretações memoráveis de clássicos do autor, como “Autopsicografia”, “O Guardador de Rebanhos”, “Aniversário” e “Poema em Linha Reta”. Sem contar as divertidas correções que Berardinelli faz à leitura de Bethânia. Quem assistir ao filme, por exemplo, jamais vai esquecer a pronúncia da palavra “saüdade”, imposta pela professora com o intuito de respeitar a métrica do poema e resgatar a beleza do trema.
O documentário é mais do que uma releitura da obra deste imenso poeta português e também ultrapassa a mera contemplação da beleza dramática e musical de Maria Bethânia. “(o vento lá fora)” é, antes de tudo, a homenagem delicada a uma mulher que dedicou a vida ao entendimento e estudo de Fernando Pessoa. Aos 98 anos, Cleonice Berardinelli nos dá uma lição de vivacidade e poesia. A professora nos faz entender que a arte literária não precisa ser, necessariamente, hermética e obscura, mas que ela pode ser simples e, ao mesmo tempo, profunda.